Recherchez dans ce blog / Pesquise neste blog

samedi 10 janvier 2015

Défense de l’intelligence d'Albert Camus

Um dos textos mais importantes que li. Conciso e objetivo, Camus mostra uma visão justa da justiça e da liberdade de pensamento. Nunca ceder ao ódio para vencer as ditaduras e o fascismo.


Texto de Albert Camus, extraído do livro “Actuelles – Chroniques 1944-1948”. Capítulo “Pessimisme et tyrannie”, páginas 114 a 119. Editora Gallimard, 1950.

Traduzido por Priscila Junglos (direitos de reprodução livre, desde que citado a fonte e autoria) em 10 de janeiro de 2015. O que figura entre colchetes são as notas da tradutora.

Atenção: a fotocópia do texto original em francês segue abaixo da tradução.
--


DEFESA DA INTELIGÊNCIA

(Fala pronunciada durante a reunião organizada pela Amitié française [Amizada francesa]
na sala da Mutualité [Mutualidade], no dia 15 de março de 1945.)

Se a amizade francesa, que é o tema, fosse somente uma simples demostração sentimental entre pessoas com certa afinidade, eu não daria a isso muito valor. Seria o mais fácil, mas seria o menos útil. E eu suponho que os homens que tomaram a iniciativa [de fazer a palestra] quiseram outra coisa, uma amizade mais difícil que foi esta de uma construção. Para que não sejamos tentados a ceder à facilidade e de contentar-nos com congratulações recíprocas, eu gostaria simplesmente de mostrar, nos dez minutos que me foram concedidos, as dificuldades da empreitada. Deste ponto de vista, eu não saberia melhor  faze-lo do que falando disto que se opõe sempre à amizade, quer dizer, a mentira e o ódio.
          Nós não faremos nada de fato pela amizade francesa se nós não nos livrarmos da mentira e do ódio. Em um certo sentido, é bem verdade que nós não estamos libertos. Nós estamos na escola há muito tempo. E é talvez a última e a mais durável vitória do hitlerismo são estas marcas vergonhosas deixadas nos corações destes mesmos que o combateram com todas as suas forças. Como poderia ser de outro jeito? Há anos este mundo está entregue a um transbordamento de ódio que nunca se viu igual. Durante quatro anos, em nossas casas mesmo, em nosso país mesmo, nós assistimos ao exercício racional deste ódio. Homens como vocês e eu, que nesta manhã acareciam as crianças no metrô, se transformavam à noite em carrascos meticulosos. Eles se transformavam em funcionários do ódio e da tortura. Durante quatro anos, estes funcionários fizeram funcionar sua administração: aqui fabricava-se citadelas de orfãos, aqui fuzilava-se homens bem em suas faces para que não fosse possível reconhece-los, aqui fazia-se entrar cadáveres de crianças aos chutes em caixões pequenos demais para eles, aqui torturava-se o irmão na frente da irmã, aqui dava-se um jeito nos covardes e aqui destruía-se as almas mais orgulhosas e altivas. Parece que estas histórias não são críveis no estrangeiro. Mas, durante quatro anos, foi bem necessário que elas se tornassem críveis em nossa carne e em nossa agonia. Durante quatro anos, todas as manhãs, cada francês recebia sua ração de ódio e seu tapa.
          Disso tudo nos sobrou o ódio. Sobrou-nos esse movimento que, noutro dia em Dijon, fazia uma criança de catorze anos jogar-se sobre um colaborador [assim eram chamados os franceses que colaboravam com os nazistas] linchado para furar-lhe o rosto. Sobrou-nos este furor que nos arde a alma na lembrança de certas imagens e de certos rostos. Ao ódio dos carrascos, respondeu o ódio das vítimas. E partidos os carrascos, os Franceses ficaram com seu ódio em parte sem utilidade. Eles se olham ainda com um resquício de cólera.
       Bom, é sobre isso que nós devemos antes de tudo triunfar. É necessário curar estes corações envenenados. E amanhã, a mais difícil vitória que nós temos que vencer sobre os inimigos, será em nós mesmos que ela deverá ser travada, com este esforço superior que transformará nosso apetite de ódio em desejo de justiça. Não ceder ao ódio, nada conceder à violência, não admitir que nossas paixões tornem-se cegas, eis aí o que nós podemos fazer ainda pela amizade e contra o hitlerismo. Hoje ainda, em alguns jornais, deixamo-nos levar pela violência e pela ofensa. Mas, deste modo, é ao inimigo que nós cedemos novamente. Trata-se, ao contrário, para nós de nunca deixar a crítica se unir ao insulto, trata-se de admitir que nosso contraditor possa ter razão e que em todo caso, suas razões, mesmo ruins, possam ser desinteressadas. Trata-se, enfim, de refazer nossa mentalidade política.
     O quê isso significa, se nós pensarmos nisso? Isto significa que nós devemos preservar a inteligência. Pois eu estou persuadido que aí reside o problema. Há alguns anos, quando os nazis tinham acabado de tomar o poder, Göring dava uma justa ideia de sua filosofia declarando: “Quando falam-me de intelegência, eu saco meu revólver.” E esta filosofia transbordava na Alemanha. Ao mesmo tempo e por toda a Europa civilizada, os excessos da inteligência e das taras do intelectual eram denunciadas. Até os intelectuais, por uma interessante reação,  não ficavam para trás em conduzir este procedimento. Em todo lugar, as filosofias do instinto triunfavam e, com elas, este romantismo ouro-de-tolo que preferia sentir a compreender, como se os dois pudessem se separar. Depois, a inteligência não cessou de ser questionada. Veio a guerra, depois a derrota. Vichy ensinou-nos que a grande responsável era a inteligência. Os camponeses tinham lido Proust em excesso. E todo mundo sabe que Paris-Soir, Fernandel e os banquetes amicais eram sinais de inteligência. A mediocridade das elites pelas quais a França se matava, parece que ela tinha sua fonte nos livros.
         Até agora a inteligência é maltratada. Isto prova somente que o inimigo não está ainda vencido. E só basta fazermos o esforço de compreender sem ideias pré-concebidas, basta que se fale de objetividade para que se denuncie sua sutileza e para que se crie um caso por conta de todas as suas pretenções. Ah não! E é isso que devemos reformar. Porque eu conheço, como todo mundo, os excessos da inteligência e eu sei, como todo mundo, que o intelectual é um animal perigoso que tem a traição fácil. Mas trata-se de uma inteligência que não é a boa, a correta. Nós, nós falamos desta que se apoia na coragem, desta que durante quatro anos pagou o preço que devia pagar para ter o direito de ser respeitada. Quando esta inteligência se apaga, é a noite das ditaduras. Este é o motivo de mante-la em todos seus deveres e em todos seus direitos. É a este preço, a este único preço, que a amizade francesa terá um sentido. Pois a amizade é a ciência dos homens livres. E não há liberdade sem inteligência e sem compreensão recíproca.
        Para terminar, é a vocês, estudantes, que eu me endereçarei aqui. Eu não sou do tipo que lhes pregará a virtude. Muitos franceses a confundem com a pobreza de sangue. Se eu tivesse algum direito, eu lhes pregaria mais exatamente as paixões. Mas eu gostaria que sobre um ou dois pontos, estes que farão que a inteligência francesa de amanhã sejam ao menos resolutos a nunca ceder. Eu gostaria que eles não cedam quando lhes for dito que a inteligência é sempre em excesso, quando quiserem provar-lhes que é permitido mentir para melhor vencer. Eu gostaria que eles não cedam nem a malandragem, nem a violência, nem a fraqueza. Então, talvez, uma amizade francesa será possível e ela será outra coisa além de um vão falatório. Então, talvez, numa nação livre apaixonada pela liberdade, o homem recomeçará a tomar gosto pelo homem, já que sem este gosto o mundo não será nada além de uma imensa solidão.

--

Cliquem nas imagens para amplia-las.